sábado, 6 de novembro de 2010

Gashadokuro


Gashadokuro
1968-
Criatura mitológica japonesa
No folclore japonês, o "Gashadokuro"(がしゃどくろ) é um tipo de "yokai" (妖怪, monstro, demônio ou ser espiritual mitológico), descrito como um ser resultante da união dos ossos das pessoas que morreram de fome, em estado de abandono, ou não foram sepultadas, se reerguendo na forma de um esqueleto gigantesco. O gashadokuro seria um ser nômade irracional, que se alimenta de carne humana. As circunstâncias trágicas que resultam na sua origem, fazem com que a criatura tenha ódio de seres humanos, como vingança por sua própria existência amaldiçoada, agindo como um monstro sanguinário que ao encontrar uma pessoa, anseia paranóicamente em causar-lhe excruciante dor e morte, através de desmembramento e mutilação.

No Japão antigo, existia um costume conhecido como "Ubasute" (姥捨て, abandonar a velha mulher), que superficialmente, redirecionava a uma lenda de que quando uma pessoa ficava velha, para seu próprio bem e de sua comunidade, ela deveria ser morta, sendo jogada do penhasco de uma montanha, evitando assim, as dores da velhice e infortúnios a sua família. Este costume já era conhecido pelos monges budistas da Índia no ano 200 a.C. mas não se sabe quando ele teria sido introduzido no Japão.
O ato de lançar pessoas idosas de montanhas já havia sido relatado na obra "Konjaku Monogatari Shu"(今昔物語集), uma coleção de 31 volumes, escrita por autores desconhecidos, entre os anos de 1120 até 1449, que faziam narrativas e crônicas sobre a vida na China, India e Japão durante este período. (De todos os volumes desta obra, o volume 21 é o único que se perdeu no decorrer da história, porém acredita-se que, como a coleção foi escrita por vários autores diferentes, o volume faltante não tenha sido criado, ou os restantes teriam sido numerados errôneamente, tendo desta forma, a coleção chegado completa até os dias de hoje.).
Tatsuhei (Ken Ogata), carregando sua mãe Orin 
(Sakamoto Sumiko) para as montanhas, em cena 
do filme "A Balada de Narayama" (楢山節考), do 
diretor Imamura Shohei, ganhador da Palma de 
Ouro em Cannes, rodado em 29 de abril de 1983.
De acordo com regras do sistema jurídico do Japão, que passaram a vigorar a partir do Século VII, ficavam estabelecidas oficialmente, as normas e condições do Ubasute, onde os deficientes físicos e os idosos com mais de setenta anos, para garantir o alívio fiscal, controle de população e redução de gastos em tempos de colheita escassa, deveriam ser conduzidos por livre vontade ou por seus familiares para as montanhas ou locais isolados pré estabelecidos que eram chamados de "Dendera"(ファイル), onde deveriam ser deixados sem agasalho ou alimento, e ali ficavam até morrer. A mudança da forma de morte, se deveu por ordem da Câmara Júridica, pois, no Japão antigo, o ato de se lançar uma pessoa de um penhasco era mais utilizado como método de execução de criminosos. 
Yanagita Kunio (柳田國男, 1875-1962)
O mais antigo registro literário do Ubasute no Japão, aparece na obra "Yamato Monogatari"(大和物語), uma coleção de contos de autoria desconhecida, publicada no ano 950. O costume também foi relatado em "Sarashina Nikki"(更級日記), diário que Sugawara Takasue no Musume (菅原孝標女, 1008-1059?), filha do político Sugawara Michizane, escreveu dos treze aos cinquenta anos. Outras citações são mostradas em peças de teatro do Século XIV, e em "Tono Monogatari"(遠野物語), uma das mais famosas compilações sobre folclore do Japão, escrita em 1910, pelo folclorista Yanagita Kunio (柳田國男, 1875-1962).
Por não haver relatos oficiais sobre o Ubasute, o número de pessoas que teriam morrido em resultado a ele e a época em que ele parou de ser praticado são desconhecidas. O Ubasute foi sendo gradativamente reprimido, sendo praticado por poucas comunidades até desaparecer totalmente, quando foi sucedida por uma cultura de respeito e reverência aos idosos.
"Ubasuteyama"(montanha onde os idosos são abandonados)
"Kamurikiyama"( 冠着山), é uma montanha de 1.252 metros, que fica localizada em Chikuhoku, no Distrito de Higashichikuma, Província de Nagano, uma área cercada por montanhas isoladas. Nove das doze montanhas mais altas do Japão estão localizadas nesta província. A Kamurikiyama é conhecida popularmente pelo nome de "Ubasuteyama"(姨捨山, montanha onde os idosos são abandonados), pois, no passado, o local foi utilizado como uma Dendera.
O idoso que era deixado na Dendera, sofria uma morte lenta e cruel, em decorrência de desidratação, frio ou fome, em uma agonia que durava aproximadamente, de três a sete dias. Quando a psicologia de tratamento aos idosos começou a mudar, esse fato contribuiu para a criação da lenda do Gashadokuro.
Apesar das raizes da história do Gashadokuro serem provenientes deste período ancestral, acredita-se que a criatura da forma como é conhecida atualmente, como um esqueleto gigantesco e vingativo, seja relativamente moderna, tendo surgido muito tempo depois, na segunda metade do Século XX.
"Nihon Ryoiki"(日本霊異記)
A obra "Nihon Ryoiki"(日本霊異記), de três volumes, escritos pelo monge budista Keikai (景戒), em data desconhecida (Estima-se, talvez, no ano 822, devido a gramática e caracteres utilizados), relata uma série de contos voltados para o sobrenatural, milagres, recompensas e punições por atos bons e ruins em vida ou em morte, inferno e reencarnação. Um dos contos fala sobre um homem que, durante uma noite, ouve uma estranha voz que reclama de uma dor em seu olho. Quando amanhece, o homem vai procurar a origem do lamento e encontra um enorme crânio semi-enterrado, com um broto de bambu que cresceu em sua cavidade ocular. O homem então, remove o broto e deixa uma tigela de arroz como oferenda ao chamado Gashadokuro, que agradecido, o deixa partir. Keikai foi um monge no Templo Yakushi-ji (薬師寺), um dos mais antigos e ilustres templos budistas do Japão, fundado pelo 40º Imperador Temmu, localizado na Província de Nara.
Por relatar um enorme crânio vivo, muitas pessoas cometem o erro de associar este conto a lenda do moderno Gashadokuro, porém, ele foi escrito visando a moral budista da retribuição, apresentando um "Gashadokuro" com a capacidade de falar, sentir dor e demonstrar gratidão, diferente do Gashadokuro moderno, que é definido como um ser irracional, movido por ódio, fome e sede de sangue, por esses motivos, eles não devem ser considerados como sendo a mesma criatura, cujo nome provém de "Gasha"(がしゃ), que na linguagem japonesa, é uma onomatopéia que remete ao som de algo sendo esmagado, rachado, rangendo ou sendo quebrado em vários pedaços (como ossos, por exemplo); e "Dokuro"(どくろ) que significa 'crânio'.
Sasaki Kizen (佐々木喜善, 1886-1933)
Nas obras que Yanagita Kunio (柳田國男, 1875-1962), o Pai dos Folcloristas Japoneses, escreveu durante toda sua vida, ele jamais relatou a existência do Gashadokuro como é descrito atualmente, assim como a criatura também não aparece nos estudos e coletâneas de contos e lendas populares de Sasaki Kizen (佐々木喜善, 1886-1933), a maior autoridade em coletânea de contos populares do país, conhecido como o "Irmão Grimm do Japão"; e também não aparece da forma citada, em nenhuma outra coleção ou livro já publicados. A ausência de menções ao personagem em quaisquer obras de literatura leva a crer que o Gashadokuro, como uma criatura faminta de ódio, não existia até o Século XX.
"Sekai Kaiki Surira Zenshu"(1968)
O primeiro registro literário do Gashadokuro, na forma como é conhecida, apareceu em 1968, no livro "Sekai Kaiki Surira Zenshu"(世界怪奇スリラー全集), do escritor de ficção científica Saito Morihiro (斎藤守弘, 1932-   ).
"Nihon Yokai Zukan"(1972)
Morihiro era membro da Associação de Arqueologia e da Sociedade Astronômica do Japão e que fazia frequentes aparições na televisão como comentarista.
Em 1972, Saito Morihiro colaborou com Sato Arifumi (佐藤有文, 1939-1999), na elaboração da obra "Nihon Yokai Zukan"(日本妖怪図鑑), um livro ilustrado para crianças, com imagens de monstros e demônios da cultura japonesa. Sato era um escritor de obras de horror e pesquisador especializado principalmente em ficção de horror infantil.
Parte das ilustrações do livro foram feitas pelo desenhista Mizuki Shigeru (水木 しげる, 1922-   ), que já tinha fama nesta área, devido a uma de suas obras:
Saito Morihiro (斎藤守弘, 1932-)
Mizuki foi o criador do mangá (revista em quadrinhos) "Hakaba no Kitaro"(墓場鬼太郎, Kitaro do Cemitério), lançado em 1959, que tinha como personagem principal, um garoto 'yokai' nascido em um cemitério, que tenta manter a paz entre os "yokai" e os humanos, tendo, as vezes, que proteger estes últimos de seus compatriotas.
Este mangá teve seu nome mudado para "GeGeGe no Kitaro"(ゲゲゲの鬼太郎) em 1968, quando foi transformado em desenho animado, popularizando as figuras folclóricas japonesas entre a mídia em geral.
Aproveitando este período de popularidade, Saito Morihiro, Mizuki Shigeru e Sato Arifumi teriam mesclado o sombrio costume do 'Ubasute', com um monstro de uma famosa gravura japonesa do Século XIX, de autoria do artista Utagawa Kuniyoshi (歌川国芳, 1797-1862), que acabou dando origem ao Gashadokuro moderno.

"Soma no Furudairi" - A Xilogravura de Kuniyoshi
1844
Ilustração japonesa
"Soma no Furudairi"(相馬の古内裏, o velho Palácio de Soma), que, no Ocidente é conhecido como "Takiyasha, a Bruxa, e o Espectro do Esqueleto", e tem como título original "Soma no Furudairi ai Masakado Himegimi Takiyasha Yojutsu o motte Mikata wo Atsumuru"(Nas Ruínas do Palácio de Soma, a filha de Masakado, Takiyasha, Usa Bruxaria Para Ganhar Aliados), é uma ilustração que Utagawa Kuniyoshi criou em 1844, utilizando a arte chinesa da xilogravura, criada no Século VI, onde a figura era entalhada em um pedaço de madeira, que depois era pintado e comprimido contra uma folha de papel, em um processo semelhante ao de um carimbo.
Santô Kyoden
O Soma do título, se refere ao Distrito de Soma (相馬郡), que foi uma área pertencente ao Clã de mesmo nome, que ficava na antiga Província de Shimosa, (hoje, Províncias de Chiba e Ibaraki), cujo primeiro proprietário foi Soma Morotsune (相馬師常, 1139-1205), no final do Período Heian (平安時代, 794-1185). Acredita-se que a família de Soma tinha parentesco com o samurai Taira Masakado (平将門).
Para realizar sua obra, Utagawa se baseou em um conto teatral de autoria do poeta e dramaturgo Santô Kyoden (山東京伝, 1761-1816), publicado no livro "Uto Yasukata Shugi Den"(うとうやすかたちゅうぎでん, Lenda Sobre a Lealdade de Uto Yasukata), em 1806.
Imperador Suzaku
Este conto romantiza os fatos que ocorreram após a chamada "Johei - Tengyo no Ran"(承平天慶の乱 Guerra Johei/Tengyo), entre os anos 935 e 940, durante o governo do Imperador Suzaku (朱雀天皇, 922-952). O nome da guerra se deve aos nomes das sub-eras em que o Japão se encontrava quando ela aconteceu. Uma sub-era pode ser também definida como "Nengô"(年号, nome do ano), tem a função de criar uma marcação referente a um evento, ou série de eventos decorridos durante um determinado espaço de tempo da história do Japão. A sub-era "Johei"(承平) iniciou em maio de 931, com a declaração de maioridade do Imperador Suzaku, e encerrou em maio de 938. Durante este período, o país sofreu uma epidemia de peste e ataque de piratas. A sub-era "Tengyo"(天慶), começou em maio de 938, quando uma série de terremotos que durou por nove dias, abalou Quioto, então capital do Império. Esta era durou até os primeiros meses do governo do Imperador Murakami, sucessor de Suzaku, no ano 947.
Taira Masakado
Em fevereiro do ano 935, o nobre Taira Masakado (平将門), da Província de Shimosa, foi atacado por Minamoto Tasuku (源扶), e seus irmãos Takashi (源隆) e Shigeru (源繁), filhos de um importante funcionário da Província vizinha de Hitachi, em uma suposta disputa de poder ou talvez, uma revelia de crime passional, iniciando uma contenda familiar, visto que ambos os clãs tinham parentes em comum. A contenda culminou com a Batalha de Nomoto, onde os três irmãos foram mortos, junto com Taira Kunika (平国香), que era cunhado de Tasuku e tio de Masakado. Estas mortes levaram Masakado a sofrer oposição de seu sogro Taira Yoshikane (平義兼), de parte do Clã Minamoto e do filho de Kunika, Taira Sadamori (平貞盛).
Taira Sadamori
Masakado foi chamado para depor na corte imperial por perturbação da paz e conseguiu ser absolvido, tendo anistia imperial. Quando voltou para Shimosa, ele sofreu o ataque das tropas de Taira Yoshikane, porém conseguiu contra-atacar, causando a fuga de Yoshikane, que morreria pouco tempo depois, em 937. Masakado conseguiu uma permissão do Conselho de Estado para realizar as prisões de seus opositores a fim de manter a paz, e marcha para a capital da Província de Hitachi para prender Taira Sadamori. Porém, Sadamori foge pouco antes da chegada de Masakado e consegue se esconder nas montanhas.
Em 939, Masakado voltou a Hitachi com uma grande força militar para interceder em favor de um de seus aliados que estava detido na capital. Não se sabe o que aconteceu, mas Masakado acabou por invadir a sede do governo de Hitachi e tomar o poder da província. Com este ato, o caso de Masakado deixou de ser uma simples contenda de senhores feudais e se tornou um caso federal, pois a ocupação de uma província por força militar sem a permissão imperial era considerado um ato de revelia e um crime imperdoável contra o Estado. Sem possibilidade de indulto, Masakado começou a tomar o poder das Províncias de Shimotsuke, Musashi, Awa, Sagami e Izu, chegando a ponto de dominar nove Províncias à força militar. O motivo que teria levado Taira Masakado, a invadir as outras províncias é incerto. As versões românticas dizem que Masakado teria a intenção de unificar o leste do Japão e se tornar um novo Imperador, todavia, outros acreditam que, consciente de que seria condenado pela invasão da Província de Hitachi, Masakado teria decidido tomar outros territórios, aproveitando do fato de que o país estava abalado pela peste, os terremotos de Quioto e os ataques de piratas. Se mostrasse ter o comando de uma grande força militar que não seria fácil de ser combatida, o governo poderia repensar sobre um contra-ataque, propor um acordo e lhe conceder o perdão se ele aceitasse dispersar suas tropas.
Fujiwara Tadahira
(藤原忠平, 880-959)
Fujiwara Hidesato
Porém, no inicio do ano de 940, o chanceler Fujiwara Tadahira (藤原忠平, 880-959), chefe do Departamento de Estado, ordenou que Taira Masakado e suas tropas deveriam ser destruídas, e começou a equipar um exército para este fim. Logo, Fujiwara ganhou o apoio de seu primo Fujiwara Hidesato (藤原秀郷), político e tido como um dos mais hábeis senhores da guerra de sua época, e do próprio Taira Sadamori. O exército imperial em número muito maior, começou a aniquilar as tropas rebeldes, que foram sendo forçadas a recuar gradativamente. Cinquenta e nove dias depois, Masakado foi acuado para o noroeste da Província de Shimosa, durante a chamada Batalha de Kojima, onde foi morto por Sadamori, tendo sua cabeça cortada e levada à capital onde foi exposta em praça pública.

Takiyasha, de Chikanobu Toyohara
 (豊原周延, 1838-1912), criada em 1884
De acordo com o conto escrito por Santô Kyoden, após a execução de Masakado, o imperador ordena que o jovem samurai Oya no Taro Mitsukuni (大宅太郎光国), pertencente ao Clã Fujiwara, vá até o Palácio de Soma, em busca de possiveis rebeldes remanescentes. Ao chegar no palácio, durante a noite, Mitsukuni encontra uma jovem vivendo nas ruínas, que se apresenta como sendo uma 'Keisei'(傾城, cortesã de alto nível, ou Geisha) de nome "Kisaragi"(衣更着). A garota diz já ter visto o samurai antes e ser apaixonada secretamente por ele. Mitsukuni desconfia, pela razão de que, para uma geisha, jamais seria permitido deixar a 'Kuruwa'(, casa de prazeres), e andar livremente a noite. Por fim, Mitsukuni descobre que a geisha é na verdade, Takiyasha (滝夜叉姫), princesa e filha de Taira Masakado. Ela tenta seduzir o samurai em vão, e depois tenta persuadi-lo a recusar os Fujiwara e apoiá-la em uma grande rebelião. Mitsukuni se recusa a um ato de traição e ordena sua prisão, e Takiyasha utiliza-se de magia negra para derrubar os soldados. Quando Mitsukuni avança em direção a Takiyasha, a bruxa desaparece e tenta matar o samurai demolindo o castelo sobre ele. (A palavra 'Keisei', como Takiyasha se apresentou ao herói, pode ser traduzida de dois modos: 'geisha', ou mais literalmente "destruídor de castelos").
Oya Mitsukuni e os Esqueletos
A tentativa de Takiyasha de matar Mitsukuni fracassa, e o samurai se levanta no meio dos escombros. O conto encerra quando a bruxa evoca um feitiço, fazendo aparecer um exército de esqueletos para assustar seus inimigos.
Esta obra foi romantizada várias vezes em peças de teatro kabuki, como na versão de 1836, onde os esqueletos foram substituídos por um sapo gigante, sobre cuja cabeça, Takiyasha aparece para encarar Mitsukuni, erguendo a bandeira do pai morto. Por fim, em algumas obras literárias, quando Takiyasha é finalmente derrotada por Mitsukuni, sua alma é mandada para ser aprisionada dentro dos domínios dos seres mitológicos conhecidos como 'inukami'(犬神, deus cão), nas montanhas de Suzuka, localizadas entre as Províncias de Mie, Gifu e Shiga, sendo regenerada após se tornar serva do espírito do lendário general Sakanoue no Tamuramaro (坂上田村麻呂, 758-811), o "Guardião de Quioto".
Para elaborar sua gravura, Kuniyoshi substituiu o exército de esqueletos do conto original por um único esqueleto gigante, que permitiu com que ele trabalhasse mais nos detalhes anatômicos da criatura, retirados de livros de medicina ocidentais. Quando fez a figura do espectro do esqueleto, Kuniyoshi não tinha a intenção de criar um Gashadokuro, e sim, de fazer uma imagem assombrosa e chocante, como uma crítica ao governo dos shoguns. Esta gravura se tornou a representação máxima e inspiração para todas as aparições de Gashadokuro, nas obras de ficção, animações e desenhos que seriam realizados a partir de 1970.
Mizuki Shigeru (水木しげる, 1922-   ), um dos responsáveis pela popularização da figura do Gashadokuro moderno
O Autor
"Vista do Campo de Sumida, do Monte Fuji"
Utagawa Kuniyoshi (歌川国芳), nasceu com o nome de Yanagiya Yoshisaburo (柳屋芳三郎), no antigo território de Nihonbashi, na Província de Edo, (hoje, Cidade de Nihonbashi Hongoku, na área de Chuo, em Tóquio), no dia 01 de janeiro de 1798, como filho de um tintureiro de seda. Começou a demonstrar talento para a pintura aos sete anos, e passou a estudar com o grande gravurista Utagawa Tokoyuni (歌川豐國, 1769-1825), que sucedeu Utagawa Toyoharu (歌川豊春, 1735-1814), o fundador da Escola Utagawa (歌川派), e foi responsável por transformá-la na mais importante escola de xilogravura do Japão no Século XIX. Yoshisaburo se tornou um dos melhores alunos de Toyokuni. Devido a sua vida pobre, foi permitido-lhe estudar sem pagar mensalidades a escola, exercendo função de auxiliar. Foi batizado como "Kuniyoshi" em 1814, e recebeu permissão para trabalhar independentemente.
Yang Lin, "Suikoden"
Apesar de seu inicio promissor, Kuniyoshi não fez sucesso economicamente com seu trabalho até 1827, quando recebeu a encomenda de uma série de pouco mais de cem figuras, para a versão japonesa de "Shui Hu Zhuan"(水浒传), do escritor chinês Shi Nai Yan (施耐庵, 1296-1372), obra considerada como um dos 'Quatro Clássicos da Novela Literária Chinesa', que no Japão foi publicada como "Tzuzoku Suikoden Goketsu Hyakuhachinin no Uchi "(通俗水滸伝豪傑百八人), Cento e Oito Heróis da Popular Lenda da Margem da Água), ou simplesmente "Suikoden" Esta publicação lhe deu uma série de outras encomendas, e Kuniyoshi passou a retratar atores e cortesãs, figuras heróicas, paisagens e caricaturas.
"Hanagami Danjo no jo Arakage
Lutando Contra uma Salamandra
Gigante na Província de Izumo"
Em 1842, o conselheiro chefe do shogunato Mizuno Tadakuni (水野忠邦, 1794-1851), implantou a chamada "Reforma de Tenpo"(天保の改革), uma série de medidas realizadas para modificar todas as áreas do Japão, desde a economia e as forças militares, até as artes e religião. 
Entre as várias medidas implantadas por Tadakuni estavam a proibição de imigrantes em Edo, e do ensino de lingua estrangeira no Japão, a implantação de um novo calendário, a remoção do Budismo nos calendários religiosos e uma politica moralista que proibia a pintura de quadros que retratassem atores. Kuniyoshi, em protesto a essas medidas passou a realizar gravuras de sátira política, criticando as medidas, a autoridade de Tadakuni e a indiferença do shogun Tokugawa Ieyoshi (徳川家慶, 1793-1853)
Kuniyoshi foi chamado várias vezes para interrogatório, teve de pagar algumas multas e escrever algumas cartas de desculpas, porém não parou de fazer suas sátiras, ganhando o apoio da população de Edo e adquirindo o auge de sua popularidade.
As reformas de Tadakuni, que visavam estabilizar a situação pública e política do Japão não foram capazes de cumprir a sua função e começaram a gerar insatisfação geral. Por fim, Tadakuni foi deposto de seu cargo e exilado na antiga Província de Dewa (hoje, Províncias de Yamagata e Akita).
"Miyamoto Musashi nas Costas de Uma Baleia"
Com a queda de Tadakuni, Kuniyoshi começou a pensar em uma forma de elevar a moral da população, e decidiu popularizar a imagem de um herói, usando como modelo, Miyamoto Musashi (宮本武蔵, 1584-1645), tido como um dos mais hábeis e conhecidos espadachins do Japão, criando a primeira de uma série de xilogravuras que faria do samurai a partir de 1848.
"Chushingura"
Em meados de 1856, Kuniyoshi começou a estudar os estilos ocidentais, com a intenção de criar uma arte mais realista, e após seus estudos elaborou várias gravuras, entre elas "Chushingura"(忠臣蔵), que fazia alusão a um conto samurai. Porém, apesar de apresentar uma ilustração diferenciada, esta nova forma não foi bem aceita por seus adoradores, fazendo com que Kuniyoshi abandonasse a pintura realista e voltasse a seu antigo estilo.
"Shimamura Danjo Takanori Sobre as Ondas"
"Chushingura"(忠臣蔵), é o nome romantizado dado a série de acontecimentos decorrentes do "Incidente de Genroku Ako"(元禄赤穂事件), ou mais popularmente, "O Caso dos 47 Ronin", que aconteceram no Japão entre os anos de 1701 e 1703. Em 1701, Asano Nakanori (浅野長矩, 1667-1701), senhor da Província de Ako e anfitrião do palácio do governo, começou a ter problemas com seu superior, o mestre de cerimônias Kira Yoshinaka (吉良義央, 1641-1703). De acordo com as versões romantizadas, Kira Yoshinaka seria corrupto e exigia compensações financeiras dos anfitriões, para assessorá-los na forma de como agir de acordo com o protocolo. Nakanori teria se recusado a pagar subornos e Yoshinaka passou a insultá-lo e humilhá-lo públicamente.
Revoltado, em 21 de abril daquele ano, Naganori tentou matar Kira Yoshinaka no Palácio Edo, mas não teve sucesso, tendo de fugir e cometendo suícidio naquela mesma noite. Com sua morte, seus 47 samurais se tornaram "ronin"(浪人, samurais sem senhor), e começaram a planejar uma forma de vingar seu mestre.
"Yotsuya Kaidan"
O planejamento foi minucioso para evitar falhas, em um processo que durou dois anos. Em 30 de janeiro de 1703, os ronin atacaram a mansão de Kira Yoshinaka, eliminaram a sua segurança, mataram-no e cortaram sua cabeça, levando-a para o túmulo de Nakanori, no templo Sengaku-ji, na cidade de Minato, em Tóquio. Tendo concluído a vingança de seu senhor, os 47 ronin se entregaram a justiça e se suicidaram algumas semanas depois.
No decorrer de 1856, Kuniyoshi começou a sofrer de um inicio de paralisia que foi tornando seus traços mais rígidos, que definharam gradativamente até que por fim, Kuniyoshi só podia mover as mãos em golpes, se tornando incapaz de prosseguir seu trabalho.
Utagawa Kuniyoshi morreu em 14 de abril de 1861, aos 63 anos, sendo sepultado no Distrito de Asakusa, em Taito. Seus restos mortais foram transladados e hoje se encontram em um templo em Josui Minami, na Cidade de Kodaira em Tóquio.
Atualmente, Kuniyoshi é reconhecido como o precursor da arte do mangá (histórias em quadrinhos japonês), seu trabalho foi prosseguido por um aluno, Tsukioka Yoshitoshi (月岡芳年, 1839-1892), que manteve considerável prestígio no decorrer de três décadas. Yoshitoshi foi o último representante da arte da xilogravura no Japão, que desapareceu pouco depois de sua morte, quando ela passou a ser considerada ultrapassada com o surgimento dos recursos da imprensa moderna e a popularização da fotografia no país.

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